sábado, janeiro 23, 2016

Isso é para ela saber o caminho para casa!

Ontem foi dia de volta quinzenal pelas pessoas sem-abrigo com a Comunidade Vida e Paz.

Normalmente esses sem-abrigo são pessoas nossas conhecidas. Sabemos os seus nomes e onde costumam estar, assim como eles sabem quem somos e o nosso propósito.

Ontem, demos com um casal que ainda não nos tinha aparecido, o João e a Maria.

O João e a Maria são um casal cigano jovem, cerca de 30 anos. Aproximaram-se da traseira da nossa carrinha num dos nossos pontos de paragem junto às Avenidas Novas. Eu entrego o habitual saco de comida e sirvo-lhe um copo de leite. Ele pergunta-me: "tem roupa de senhora? É aqui para ela que precisa de roupa". Digo-lhe para perguntar na parte da frente da carrinha, junto das outras voluntárias que estão a distribuir roupa.

Olho para a Maria, atrás do seu João. Segue-o com um ar envergonhado e de braços encolhidos.  Não sei se de frio, se de vergonha,  se ambos.

Uma das nossas voluntárias é assistente social e, muito por culpa da sua experiência profissional, mete conversa, faz perguntas, pergunta-lhes se são ciganos, brinca com eles imitando o seu sotaque, cria um clima de relativo à-vontade que permita ao João e à Maria partilhar connosco um pouco da sua história.

João , mais extrovertido e falador, diz-nos que não têm documentos, pois foram assaltados e tudo o que tinham estava na mala de Maria.

Maria não fala. Mesmo quando lhe fazemos perguntas directas, ela responde "ele é que sabe dessas coisas". Posicionada sempre atrás de João, retraída, cabeça para baixo, vergonha em falar, braços dobrados sobre a barriga, encolhida.

A certa altura a voluntária  pergunta directamente "então e essa nódoa negra aí no pescoço, Maria? Foi alguma brincadeira?"

Maria arranca os olhos do chão, leva a mão ao pescoço, olha para João e lança um sorriso embaraçado.

João fala por ela e faz questão de sublinhar: " isso é para ela saber o caminho para casa, agora já sabe!" Assim, sem medos, sem meias-medidas, sem gota de arrependimento! Ali não mora a culpa.

Deu-me vontade de lhe dizer "mas qual casa, se tu moras na rua, meu bandalho?"

Fiz das tripas coração para não lhe dar uma murraça, fiz das tripas coração para não lhe pedir de volta o saco de comida que há minutos lhe tinha dado e para não o obrigar a vomitar o copo de leite que lhe servi.

Por momentos pensei para os meus botões: "Não foi para isto que eu saí de casa!

Normalmente no fim da volta, chego a casa de coração cheio, com a certeza de que ajudei quem mais precisa, quem está no limiar da pobreza. Apesar de cansada, apesar de ter largado a minha família e o conforto do meu lar para ir ajudar estranhos, chego a casa feliz.

Ontem cheguei a casa com a sensação de impotência e com a certeza de que nem todos merecem a nossa ajuda! Por momentos, lembrei-me "E ainda falam nos refugiados oportunistas".

Para quem, na questão dos refugiados, argumenta que temos de cuidar primeiro dos nossos, eu respondo que preferia mil vezes que aquele saco de comida e copo de leite tivessem ido parar ao estômago de um sírio que deu tudo o que tinha e correu risco de vida para arrancar a sua família da violência da guerra, do que a este ignorante miserável que se sente gente quando agride a mulher alegadamente para a meter no sítio.

Mas quem sou eu para definir quem merece ou não merece?


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