sábado, abril 16, 2016

Há coisas para as quais nunca estamos preparados

Ontem foi Dia de Volta com as Equipas de Rua da Comunidade Vida e Paz, tal como já tenho vindo a fazer de há cerca de um ano a esta parte.

Todas as voltas são diferentes. Apesar de os sítios de paragem serem os mesmos, de já conhecermos a maior parte das pessoas sem-abrigo que visitamos, a quem distribuímos comida, damos dois dedos de conversa e um passou-bem, há sempre alguém novo, uma conversa diferente. Um que já voltou para a família, outro que lhe perdemos o rasto, outro que apareceu na Tv porque a Segurança Social lhe arranjou casa, etc.

Apesar de tudo isto, há situações para as quais nunca estamos preparados e às quais nunca nos habituamos. Ontem foi um desses dias.

A maior parte das pessoas sem-abrigo que dorme na rua são homens. De vez em quando lá aparece uma senhora de idade ou um casal jovem, mas na sua grande maioria são homens.

Ontem, descobrimos uma grávida.

Numa das nossas paragens em plena Avenida da Liberdade, quando estou a sair da carrinha, aparece-me uma senhora dos seus 30 anos a pedir-me ajuda. Não para si, mas para uma grávida.

-Venha por favor!,  dizia-me. Ela está grávida, não come nada há horas, só chora e está muito nervosa. Vocês não têm nada para ela comer?

Fui à bagageira da carrinha, peguei num saco de sandes e num pacote de leite e disse-lhe
- Mostre-me onde ela está.

Não sei muito bem no que pensei, não sei de que forma achei que poderia ajudar a não ser dando-lhe comida. Não tenho qualquer formação em medicina ou psicologia, nem sou sequer assistente social. Sou apenas uma voluntária, mas nestas alturas a vontade de ajudar bate mais forte.

Fomos duas, eu e outra voluntária ver o que se passava. Por questões de segurança, nunca avançamos sozinhas.

Uns metros mais abaixo estava uma grávida, negra, toda vestida de preto, com o rosto encostado à parede do predio, olhos fechados, a abanar o corpo em movimentos repetitivos como se de um autista se tratasse.

Estavam mais duas miudas já com ela, que quando nos viram nos trataram como anjos caídos do céu.- Ainda bem que apareceram, ela não quer comer, não se quer sentar, não fala, só pede para não chamarmos a polícia nem a segurança social, pois tem medo que lhe tirem o bebe. Obrigada por terem vindo.

Aos poucos tentamos que fale connosco e ficamos a souber que o seu nome é Ana, está grávida de sete meses e meio de um menino que se irá chamar Luís.

Pergunto à Ana se tem fome, se quer o saco que tenho para lhe dar. Rejeita, não quer comer.

Guarda na tua mochila para comeres mais logo, quando estiveres mais calma - peço-lhe e ela acede. Tira a mochila das costas e deixa-me guardar as sandes e o leite para mais tarde.

Cospe, cospe para o chão frequentemente, e abana-se. Será dos nervos, será desidratação?
A porteira do prédio ao lado traz um copo de água que ele bebe de enfiada.

Mais calma, e aos soluços lá nos explica que tem pernoitado numa pensão junto à Av. Almirante Reis, mas esta noite não tem dinheiro para o quarto.  Está na rua, vai dormir na rua por não ter como voltar para a pensão. Continua a abanar-se em gestos repetidos como uma mãe que embala um filho, põe as mãos nos ouvidos e diz - está muita gente aqui, só quero estar sozinha. Tem medo que alguém a veja assim, que chame a segurança social. Já não seria a 1ª vez que ficaria sem um filho. Tem uma filha com 4 anos e já ficou sem ela.

O que será desta criança?- é o meu primeiro pensamento.
Não posso julgá-la, não é para isso que aqui estou.

Disse-lhe - Ninguém está aqui para te fazer mal, ninguém te vai tirar o teu bebé, mas tu tens de sair da rua. Não podes ficar a dormir aqui. 

A porteira pergunta com toda a frontalidade:
O que precisas é dinheiro? Queres ajuda para pagar o quarto?
Abre a carteira, estende a mão com dez euros. Toma! Já é uma ajuda, e neste momento é o que te posso dar.

Nós voluntários não temos por hábito andar com dinheiro, e estamos ensinados a não lhes dar dinheiro mesmo que nos peçam. Comida, é para isso que lá estamos e é isso que temos para dar.

Rapidamente outra pessoa, vai à carteira e se oferece para lhe dar outros 10€. Com 20€ já podia pagar o quarto para aquela noite.

Por segundos pensei, com estranheza, no privilégio que é assistir a este aparato. Quatro estranhos na rua que se reunem à volta de uma grávida chorosa e desamparada, que se apressam a pedir ajuda a duas voluntárias da Comunidade Vida e Paz, e num curto espaço de tempo se disponibilizam para pagar a estadia da Ana para aquela noite. Ainda há gente preocupada neste mundo.

Perguntaram se precisaria de mais dinheiro para as noites seguintes, mas a Ana disse que não. O marido estava no alentejo e haveria de arranjar maneira de a vir buscar ou de lhe comprar bilhete de autocarro para ir ter com ele.

Não conheço o passado da Ana. Não sei por que motivos ficou sem a primeira filha, nem o que a levou a engravidar uma segunda vez vivendo nesta incerteza e neste pânico de a qualquer altura a segurança social lhe levar o filho. Apenas sei que não conseguimos, nenhuma de nós conseguiu, encontrar a Ana naquele estado avançado de gravidez e deixá-la a dormir na rua.

Já tenho visto muita coisa nestas madrugadas com as equipas de rua com a Comunidade, mas há coisas que nunca me irei habituar. Há coisas para as quais nunca irei estar preparada. Ver uma grávida a dormir na rua é uma delas.

Estar grávida é um estado de graça, é estar de esperanças, é acreditar no futuro. Que futuro terá, à partida, esta criança?

Cheguei a casa meio apática, a pensar que parte daquela história seria verdade, que parte seria a Ana a inventar para se proteger. Será que havia sequer um marido? Se sim, porque não estava com ele nesta noite? Por que razão se preparava para dormir na rua?

Desconfio que nunca saberei a verdade, mas tenho cá para mim que tão cedo não esquecerei a Ana e o seu Luís.









4 comentários:

  1. Que nó no estômago! Lembrei-me que deixei de ter probleminhas agora mesmo... porque felizmente não passam disso! É daqueles relatos que abanam consciências!
    us4all.blogs.sapo.pt
    http://facebook.com/us4all/

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    1. Acreditas que vim para casa a pensar se não devíamos efectivamente ter contactado a Seg Social? Naquele momento não consegui fazê-lo, ela estava tãoa assustada que dava dó!

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